Um tiro de ressentimento


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Já falei sobre o Twitter uma vez, mas vou falar de novo. Nesse ambiente virtual em que as pessoas escrevem o que pensam, sem realmente pensar no que escrevem, muito do inconsciente dos sujeitos contemporâneos se deixa entrever. O tuíte é quase uma brincadeira de “associação livre”, a pessoa diz o que algum estímulo a faz pensar, e essa é uma experiência única. Além disso, a invisibilidade, a falta de compromisso, o fato de se “falar sozinho” (para um público infinito) promovem uma espécie de desligamento temporário de pudores e censuras, breves férias para o superego (saiba mais sobre o conceito psicanalítico neste artigo em pdf). E o que se revela, então, é bem interessante.
No dia da posse da presidenta Dilma Rousseff alguns tuiteiros associaram o que viam na TV à cena da morte de J.F. Kennedy. Em seus tuítes, essas pessoas pediam, defendiam, idealizavam, a repetição do tiro que partiu de lugar incerto e atingiu a cabeça do líder político mais querido dos EUA. Uma cena que está na memória de todos e que, de tão repetida, se tornou o espelho ideal para refletir os desejos dessas pessoas – e você pode conhecer pelo menos algumas delas aqui).
Dilma tem uma relação especial com a democracia. Assim como os presidentes eleitos que a precederam, ela também combateu a ditadura militar no Brasil. Mas ela sofreu tortura. E essa experiência, que difere sua luta da de outros governantes, marca sua trajetória, seu discurso e, portanto, sua imagem.
Creio que, por isso, uma democracia que tem Dilma como autoridade máxima é mais incômoda do que aquela que tem Lula ou FHC no Palácio do Planalto. Dilma é, em certa medida, uma figura que traz à tona a memória de um regime que deixou marcas em nossa cultura – uma delas a crença de que conflitos se resolvem com violência. Mas Dilma é a negação dessa lógica inscrita em muitas mentes, e com isso ela causa um duplo incômodo.
Dilma foi também protagonista de uma das campanhas presidenciais mais truculentas da história recente. Seu adversário na disputa se dedicou a defender, promover e aplicar métodos de campanha e discursos, para dizer o mínimo, fascistas. Investiu na produção da imagem de sociedade cindida, dividida entre “nós” e “eles, os inimigos”. Adubou essa paisagem com preconceito e ódio. O “candidato da oposição” reforçou as cores desse cenário fazendo de si mesmo uma “vítima”, passiva, inocente, e o episódio da bolinha de papel foi o auge desse processo. A grotesca encenação desmascarou palco, cenário e o ator principal. Terminada a campanha, e tendo o “nós” sido derrotado por “eles”, o preconceito e ódio se tornaram mais fortes.
Tudo isso faz de Dilma um alvo ideal do ressentimento dos perdedores. “Ressentir-se significa atribuir a outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer”, define Maria Rita Kehl em seu livro Ressentimento (esgotado, Google Preview aqui).
A autora também lembra que o ressentimento está ligado a uma “rendição voluntária” em que os indivíduos se fecham em sua condição narcísica e deixam de ser sujeitos, ou seja, deixam de usar sua potência de agir para transformar sua condição. Tornam-se passivos, queixosos, estéreis, sempre repetindo ladainhas repletas de desejo de vingança, sempre à espera de alguém ou algo (até mesmo um “franco-atirador”, como diziam muitos tuítes) que cure seu orgulho ferido com alguma ação prejudicial ao inimigo.
Acho que o caso de Dilma é particular porque, além da derrota, o que faz sofrer essas pessoas é a própria democracia.
É crença geral de que a democracia é a liberdade de expressão. Não deixa de ser verdade. Mas essa é uma visão bem reducionista do regime democrático. A democracia é, principalmente, o contrário da homogeneidade e pressupõe conflitos, a negociação de conflitos, um certo grau de insegurança, a impossibilidade de satisfação plena, o convívio com as diferenças e saber agir em defesa de seus interesses.
Quando as pessoas clamavam no Twitter por um tiro de ressentimento que eliminasse a presidenta, estavam atestando sua própria incapacidade de lidar com a democracia. Pessoas cujos olhares míopes não suportam as diferenças de classe e os ouvidos intolerantes se irritam com a diversidade de opiniões; pessoas que acreditam que um tiro soluciona um conflito ou uma insatisfação, como mostram os regimes totalitários. Pessoas que não sabem agir, porque estão presas a seu individualismo e não se emanciparam como sujeitos. E que repetem o que tem sido o comportamento da oposição desde o primeiro mandato do presidente Lula: inação, queixas, acomodação, passividade e a espera de que alguém venha resgata-los da derrota, da falta de popularidade, da descrença em seu projeto (?) de sociedade.
 

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Beauvoiriana (aka Literariamente)